terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

O Argentino

O argentino. No caso seriam dois argentinos. Peguei o mesmo ônibus de sempre, não, melhor começar quando o primeiro argentino entrou em minha vida.
Ontem, revirando o armário do meu primo para ver se algum livro me tirava do tédio de minhas férias forçadas, encontrei Borges.
Comecei a lê-lo, já havia visitado algumas de suas histórias pela internet . À noite levei-o para cama e sem forças para chegar ao fim adormeci a seu lado. Acordei tarde, como todo semi-empregado, quando me animei para sair resolvi que iria pegar o mesmo ônibus de sempre, porque sempre que eu inovo a vida debocha.
No ônibus havia aquela tradicional paçoca de gente. Em certa altura do trajeto, quando estavamos na ex praça da Manchete, dois homens e uma mulher se aproximaram do meu banco. Não dava para saber se eles entram ali ou se só agora conseguiam chegar mais para o fundo do ônibus. Classicamente como em todo ano de copa do mundo eles falavam sobre "football" , para minha surpresa o mais bonitinho começou “hablar” sobre Maradona e num tom de deboche social o outro disse:
-O único argentino que eu gosto é você!
Achei engraçado o argentino ali, solitário de compatriotas, no ônibus lotado. A minha imaginação infantil me fez pensar “Será que existe ônibus lotado na Argentina?”. Por outro lado, um jogo de informações mais sensato me trouxe a mente “O Morto” de Borges e o suposto brasileiro Azevedo Bandeira, líder de um grupo de mercenários na Argentina .
Um dos comentários de Borges sobre Azevedo Bandeira era: “ Alguém opina que Bandeira nasceu do outro lado do Quaraí, no Rio Grande do Sul, isso, que deveria rebaixá-lo, obscuramente o enriquece de selvas populosas, de lamaçais, de inextrincáveis e quase infinitas distâncias”
Agora consegui transcrever exatamente as palavras de Borges , porém, no momento em que o segundo argentino da minha vida me olhou nos olhos eu as senti em mim, no meu cabelo ondulado, na boca vermelha que insisti em pintar sem motivo aparente. Fui Azevedo Bandeira naquele instante.
Os amigos do argentino que pareciam ser do trabalho desceram do ônibus na Barra Funda, onde geralmente o ônibus esvazia , para novamente lotar e ir rumo a Vila Madalena. Eu já estava sentada e o argentino de pé. Quase todas as demais poltronas estavam livres inclusive a que era bem ao meu lado.Pressenti que ele se sentaria ao meu lado. Optei por não olhá-lo a decisão teria de vir dele. Feito! Meio sem jeito, com medo de encostar em mim ele se sentou. Rapidamente coloquei os fones de ouvido, tive vergonha do próximo passo que já havia decidido tomar. Sim, o Borges ia comigo dentro da bolsa e agora seria a hora perfeita de colocá-lo para fora alisando-o na capa para dar uma valorizada. Sei que não faz sentido colocar fones no ouvido quando se quer que uma pessoa fale com você, mas era como um efeito dispersivo para não parecer oferecida demais , afinal de contas eu não tinha entendido se aquilo era uma paquera real ou um tesão derrubador de fronteiras xenofóbicas futebolísticas.
Senti o olhar dele nas paginas que eu lia (mais olhei para as palavras que compreendê-las), tive medo de fulminá-lo com o brilho deslumbrado que minha imaginação provavelmente desencadeava em meu rosto, por isso, não virei na sua direção. Concentrei-me primeiro em sentir-lhe o cheiro, mas o ônibus lotado confundiu meu olfato.
Nenhum comentário. Eu não tenho certeza, mas para mim o Jorge Luis Borges na Argentina era tipo um Jorge Amado aqui (na questão popularidade), ele poderia fazer um comentário. Ah sei lá, se eu tivesse na França e de repente um francês gato tirasse um Jorge Amado da mochila, mesmo sem conhecer sua obra eu diria “ Esse escritor é brasileiro muito famoso lá, não sabia que era lido fora também e aí tá gostando?” , não precisa ir longe se eu tivesse num ônibus lotado sem ninguém interessante no Uruguai e alguém tirasse um Jorge Amado da bolsa eu falaria a mesma coisa, só pra descontrair.
Ele se encostou no meu ombro, tudo o que eu pensava se desfez em neblina, fiquei quieta para tentar ouvir da parte do seu corpo que encostava no meu toda a sua real história. O coração bateu forte, parecia intimidade demais. Tive medo desse desconhecido, perdi o foco me levantei com uma borboleta bêbada, sem saber por que. E em segundos tropecei no pé do argentino, dei sinal para descer antes do previsto, desci e só consegui encará-lo quando estava na calçada de frente para a porta traseira do ônibus. Para minha surpresa ele alcançou o meu olhar até o ônibus partir e pela janela nos concentramos um no outro até o motor vencer os meus passos acelerados na calçada.O deixei ir, para ele tentar ser mais uma boa história.
Dos dois argentinos fiquei com o invisível e imaginativo, Borges continua na minha bolsa, e o real ,o que eu não sei se é Jorge, foi engolido pelas selvas populosas e pelos lamaçais de bem do outro lado do Quaraí que o outro, à muito, imaginou.