quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Pernas do Centro

Varre, atende, cardápios, trocos.
-Pensa em que ?
-Trabalha para quem?
-Filhos, aliança no dedo.

Escreve, assina, barganha e pensa.
-Trabalha por quê?
-Carro, casa na praia, estacionamento.

Corre, se cansa, anda de pasta plástica.
-Pensa...
-Procura trabalho.
-De que?
- Qualquer, porque sonha.

Sonha, brinca, enche a cara, caminha.
-Deprime, por quê?
- Pensa a mais.
-Trabalha para quem?
-Para si, desculpa-se.
-Quer saber o que todos fazem, por quê?
-Não sabe quem é!

Sheyla Coelho

terça-feira, 12 de agosto de 2008

Tito

Tito era um rapaz desses que não enxergam o lado ruim da vida, tinha uma complacência inata, invejada nas mesas de bar que frequentava.
– Tito é um grande camarada, quando minha namorada me deixou, disse que não me preocupasse, “a vida é assim, foi-se essa, um dia virá outra, e nada de ser melhor ou pior, só vai ser igual e diferente como os domingos”. Esse Tito é mesmo uma figura, e não pense que é só nesse papo de curar dor-de-cotovelo não, de onde veio esse papo de domingo sai cada uma! - declarou certo dia, no Bar, um amigo de Tito.
Assim era Tito, sempre cheio de conselho, era querido pela amizade, pelas palavras de ajuda, pelo alto astral. Ele não era um rapaz de grande sonhos e pretensões, falava que quem muito imagina pouco olha. Era uma dessas pessoas que faz amizade em ponto de ônibus, e não digo daquelas conversas rápidas que uma vez ou outra a gente tem e só dura até o ponto de descida, se ele estivesse a seu lado, você também o convidaria para uma cerveja logo mais, e se você é do tipo desconfiado, ele já saberia de sua vida conjugal. Uma amiga taróloga que conheceu no vão do Masp analisa:
– Tito é de Peixes, o último dos signos e com ascendente em câncer, o que traz essa vontade de confiar nele, essa coisa família.
Ele passeia bastante, prefere sair só, não porque não tenha amigos, mas diz que quando se sai acompanhado, as chances de conhecer gente nova diminuem.
Em uma tarde, foi ao parque do Ibirapuera andar de bicicleta. Viu próximo ao lago uma garota, ela lhe chamou a atenção, Tito sempre admirava as mulheres, todas, não importava nacionalidade ou idade, mas também, como a tudo, lhes dava uma intensa atenção efêmera.
Com a bicicleta começou dar voltas, porém sem a perder de vista; ela não o notou, estava entretida em um livro grosso, tentou ler o título, mas estava longe. O conhecido Tito do povo se aproximaria, mas aquele Tito daqueles segundos ficara de pernas frouxas, não se reconhecia.
E no seu minuto mais aflitivo até aquele dia, lutando para voltar a ser quem era, um homem sem pretextos, caminhou em um ato legítimo de coragem até a garota que lia.
Em um ato inusitado, o corpo da moça sentiu a sua presença, de súbito levantou a cabeça e disse rápida:
– Você fuma?
– Não - escorreu-lhe da boca, sem nada a complementar.
– Valeu, é que eu queria um isqueiro - disse e enfiou novamente os olhos no livro.
Os pés de Tito o levaram adiante, confuso e sem coragem de olhar para trás. Apiedou-se em seus próprios conselhos: “Se não é essa, será outra”. Porém por mais conforto que esta lição sempre cause, desta vez o nosso Tito experimentou a dor de não poder ter sido essa, e sim uma outra. Pegou a bicicleta que deixara no chão e durante todo esse dia não conversou com ninguém.


Sheyla Coelho

Ainda Flora e Zanca

– Vem!
– Se eu lhe pedisse para vir comigo, você viria?
– Não! ...Quer dizer, não sei, nunca te vi.
– Então por que pede para que eu vá?
– Ah!... Nossa, desculpe, só pensei alto, nem notei que alguém já havia ocupado o lugar do meu lado.
– É, notei que você estava distante. Qual o seu nome?
– É ...bem, Flora, eu me chamo Flora, e você?
– Eu me chamo Zanca, prazer.
– É, prazer ...Nossa, é meu ponto, eu estava em outra dimensão mesmo...
“Foi assim que conheci Zanca, nome estranho, não era bonito nem feio, mas tive medo dele, desci dois pontos antes do habitual. Sou assim com ônibus, fico pensando nos problemas da vida e entro numa outra dimensão mesmo, mas sempre tenho idéias boas dentro do ônibus, e andando também, parece que quando a gente está nessas situações que a gente não tem muito o que fazer, o imaginário cria com cuidado nossos maiores sonhos e nossos maiores medos se concretizando, só que como é uma simulação a gente sempre age da maneira certa, senão voltamos um pouco a fita e tudo se ajeita.”
Ela é mestre de cerimônias, dona de uma linda voz, de uma existência teimosa e de um talento inato para a prolixidade.
“Sentei-me do lado de uma garota, achei que tivesse fones no ouvido, tinha um olhar tão perdido, se não estivesse certo de que não havia fone, juraria que ela estava escutando uma dessas músicas do Chopin, Beethoven, Mozart, tamanha era a complexidade do seu olhar. Sabe, às vezes a gente saca tipo: olhar apaixonado, triste, de louco, e o dela era inatingível, parecia mergulhada em um imenso vazio, ela era linda. Foi aí que ela falou, e alto “vem!”, quis provocá-la, queria saber o que ela estava pensando, não pude deixar passar.”
Ele é atendente de telemarketing, não gosta do trabalho, mas tem que trabalhar para pagar o curso de teatro.
Ela não se lembra mais da fisionomia dele, porém sempre que está entre amigos conta o fato aqui exposto como o maior mico de sua vida. Ele se lembra de cada gesto, nunca a esquecera, nunca soube explicar o fascínio que aquele ser absorto lhe causara, a reconheceria. Tanto que reconheceu:
– Um café, por favor! Para viagem.
– Flora?
– Quem? Acho você se confundiu.
– Não , Zanca, do ônibus - sorriu (estação Ana Rosa, seis meses atrás).
Ela se lembrou, não dele, mais do nome, do fato, sentiu vergonha quando a amiga chegou.
Oi, Fernanda. Nossa, chegou cedo.
– É, vim antes para pegar um café.
– Fernanda - sussurra ele ao seu lado.
Ela olha-o, deixa se levar pela amiga, pega o café.
Ele acena com a mão, sente uma profunda tristeza, como se algo dentro dele morresse, não sabe muito bem o que, então morde seu pão na chapa e começa seu dia.

Sheyla Coelho