segunda-feira, 28 de julho de 2008

O amor dos desconhecidos

O grande apelo
Das bocas fugidias
Das velhas canções de amor

O samba falsificado
De tuas pernas brancas.
A cadência incompreensível
De olhares desconhecidos

Hoje estão a caminhar
Nas estradas da pele,
Na identidade de teus dedos.

A tristeza fria dos dias de solidão,
Se aquieta no dia do reencontro,
Onde bocas perdidas,
Sufocam respirações, enganam corações.

E ao calar dos instintos
Renova-se a melancolia do adeus,
Que torna cada encontro secreto,
Enquanto bocas anônimas se beijam,
Em quarteirões e quartos escuros
Por onde o amor que ninguém viu
Evapora-se como surgiu

E o cotidiano fixa-se
Na memória vaga
Dos reencontros possíveis perdidos no tempo.

Sheyla Coelho

O Jogo de Taco

Era dia claro, quase sem nuvens. O despertador tocara alto, e Sofia acordara bem, levantou com o famoso pé direito, respirou fundo, sorriu para a cama bagunçada. Era um dia perfeito como todos os outros: tinha uma manhã, teria uma tarde e com certeza a noite viria.
Chacoalhou-se, pulou e correu ao banheiro para que os lençóis não tivessem chance de convencê-la a voltar para a cama.
A água caía, o sabonete em suas mãos limpava, a escova de dentes tirou-lhe o gosto da noite dormida da boca, não comeu - sentira-se um pouco acima do peso na noite passada. Saia posta, blusa escolhida, sapatos calçados, chaves em mãos, tomou o rumo da rua. Na rua conhecida, deu uma bronca na vizinha que lavava a calçada e partiu em direção aos três quarteirões que a levariam ao habitual ponto de ônibus.
Chegando lá, parou, com o pé direito acariciando o chão em semicírculos, perguntou baixinho a si mesma:
– Para onde vou?
Não era louca, porém aos domingos sempre assim procedia. Como em um ritual, entregava-se às ruas, aos novos caminhos, a lugares onde seus sapatos ainda não haviam pisado e decidiu-se:
– Entrarei no segundo ônibus e descerei no décimo sexto ponto.
E assim foi feito. Já entrara naquele ônibus, afinal, tão perto de sua casa não havia muitos. Todavia, nesse ponto, nunca antes descera.
Parou em uma rua perto do centro, sabia mais ou menos onde estava, as ruas não tinham por ali muito movimento a não ser algumas crianças bolivianas que jogavam taco. Surpreendeu-se por as crianças saberem a brincadeira da sua infância, talvez por serem bolivianas, não tinha muita certeza se na Bolívia podia-se jogar taco e também porque sempre via no jornal a saga dos pais para arrancar as crianças de computadores e playstation. Não conhecia nenhuma criança de perto, era filha única e a família que tinha morava no interior. As crianças logo a notaram; sem jeito, começou a procurar algo na bolsa.
A bola correu longe com a tacada do menino de camiseta laranja.
– Tia, pega a bola - falaram os novos brasileirinhos.
Com a agilidade que o impulso lhe deu, parou a bola com o pé esquerdo, após um largo passo para o lado, o coração bateu rápido, e ela pegou a bola em uma das mãos. A menina encarregada da bola parou na sua frente:
– Valeu, tia - estendendo a mão.
Ela sorriu para a chiquita com gosto de travessura, como sorriu tantas vezes na infância do interior, correu sobre o pequeno salto e entrou no jogo.
As crianças se divertiram, a não ser o menino de camisa laranja, que não conseguiu rebater. Ela teve vontade de jogar a partida toda, mas a sua posição de adulta a proibiu, fez um jóia para a chiquita, que riu e rapidamente lhe ensinou um aceno mais moderno para as boas jogadas.
E o dia que nascera perfeito correu em seus passos e pensamentos, revivendo naquele momento um misto de coragem e liberdade que, aos olhos do dia seguinte, seria uma memória que mesmo sendo recente se misturaria com aquelas da infância de cor sépia.

Sheyla Coelho

A Bela do Cigarro

Fumava cigarros como uma artista de cinema antigo. Gostava de sair só, sentava-se sempre em uma mesa estratégica, onde fosse possível observar, gostava de ver outras pessoas conversando, achava incrível como as pessoas falavam de assuntos tão diversos e tão próximos; sempre havia uma mulher a ser execrada no papo de mulheres, sempre havia a mulher gostosa no papo dos garotões, e sempre, ah!, sempre havia uma suposta outra no papo dos namorados - em menor ou em maior grau, sempre havia algo de extremamente clichê, mas os detalhes eram a riqueza. Pedia uma cerveja e tomava-a lentamente, nunca tinha muito dinheiro, precisava então fazer o consumo demorado, antes pedia café, mas o café acabava rápido, e os gerentes olhavam feio. Às vezes, pensava se havia alguma profissão parecida, achou que seria psicologia, mas logo desistia, precisaria responder às pessoas, dar conselhos, e ela gostava mesmo era de ouvir, saber.
Ia cada dia em um lugar diferente, assustava-a que pudessem taxá-la de bisbilhoteira ou a solitária, porque sempre que se observa, assim, em lugares públicos, corre-se o risco de também ser observada, e ela não saberia como agir sendo ela o alvo da atenção.
Nesse dia, sentou-se em um bar vazio, os dois garçons conversavam, ela sentou-se, pediu a cerveja e, minutos depois, entrou um rapaz que também sentou-se só. Não conseguia classificá-lo, quem seria ele? Homem esperando amigos, homem esperando namorada, não conseguia identificá-lo.
Os olhares dele e dela se cruzaram umas tantas vezes, a cerveja dela já estava pela metade e mais ninguém entrara pela porta.
O interesse dela por aquele rapaz tonara-se trasbordante, não conseguia tirar os olhos dele. Como seria sua voz? No que ele ali pensava? Que profissão teria ele? Não havia uniforme, pasta, ele poderia ser qualquer coisa. Levantou-se, foi ao banheiro para passar o mais próximo possível dele, passou estrategicamente com toda graça que uma mulher possui quando quer algo, foi, voltou, ele até a olhou, mas nada disse, talvez nem tenha olhado para sua bunda como ela acharia normal. Sentiu-se um pouco ridícula quando retornou à mesa, não se achava muito bonita.
Ele então levantou-se, pagou a conta e se foi. Isso aconteceu às 20h38 de uma quinta-feira, horário e dia em que sempre poderemos encontrar a bela do cigarro (como a nomeou em segredo um dos garçons), a sós, naquele bar não muito aconchegante e longe de sua casa, à espera de um próximo encontro.

Sheyla Coelho