sábado, 27 de dezembro de 2008

O presente de Iolanda

Chegava cedo, saía de casa antes do sol se atrever a enfrentar as densas nuvens cinza da metrópole. Ia aos arredores da praça da república onde tinha seu lugar reservado nas leis que os próprios ambulantes estabeleceram, de um lado ficava o Josival dos óculos escuros e do outro dona Rosa dos brincos, pulseiras, crochês...
Seu Manuel dos relógios, como era conhecido, passava seu dia. Correu do rapa, armou e desarmou pelo menos quatro vezes sua engenhoca prática, uma mala de madeira muito lixada e pintada de verde e um cavaletinho para apoiar, que fabricou no quintal de sua casa lá em São Matheus. Tudo se desmonta em menos de meio minuto.
 Não é um senhor de muito papo, a não ser com os fregueses e no sagrado jogo de dominó de domingo, lá do Bar do Isaías.
- Oh, dona Rosa vêm aqui um pouquinho, faz favor.- disse com uma cara angustiada.
- Fala Maneco aconteceu alguma coisa - disse ela de espanto, tão raro ele a chamar.
- Sabe que é, hoje é aniversário da Iolanda e eu não sei...queria dar um presente pra minha velha, mas não sei o que.
- Ah,... Pense numa coisa que ela gosta, tenho uns brincos lindos que eu fiz noite passada.
- Ihh! Não vai adiantar não a Iolanda nem furo na orelha têm.
A dona Rosa fez uma cara estranheza ( como assim uma mulher que nem tem furo na orelha), mas era assim sua Iolanda, era moça nascida em fazenda não tinha essas frescuras. 
O dia já se ia e nada de idéia nenhuma, sem contar as vendas, só cinco relógios. Tinha umas contas para pagar e a vontade de presentear a esposa ficava cada vez mais obtusa. 
Já triste por não ter comprado nada, ajeitou o cavalete, foi ao ponto , acenou para o ônibus que o levaria para casa e tendo andado uns seis quarteirões a bordo, da janela, avistou uma floricultura.
- Margaridas, a Iolanda adora as margaridas!
Desceu do ônibus, logo passaria outro e daria tempo de pegar a integração.
- O que o Senhor deseja?
- Margaridas, daquelas grandonas - disse ele entrando afoito de mala e cavalete em punho.
- Infelizmente não as tenho.- disse a senhora naquele tom falsamente triste- mas temos outras flores, qual é a ocasião?
- Ocasião?
- É. Para quem são?- respondeu-lhe num tom quase didático.
- A ocasião é que minha mulher tá de aniversário.
- Ah, sim, vejamos....
- Como se chamam aquelas ali ó -apontou com o dedo- roxas e rosa dependuradinhas?
- São conhecidas como brincos de princesa.
- É caro?
- Aquele vaso é trinta reais.
Seu Manuel achou bonito, talvez pelo nome, quando namoravam chamava dona Iolanda de princesinha, porque ela era meiga, pequeninha, magricelinha.
 É. Porém os 40 reais da conta de luz o fizeram pensar, tinha só 50 do trabalho de hoje e quando já ia se esquivando para sair, surgiu-lhe uma idéia. Teve vergonha, mas coração deu um impulso e a proposta pulou meio sem jeito:
- Se eu der dois relógios e 10 reais , a senhora deixa eu ficar com os brincos de princesa?
-Ah, infelizmente...
Ele respirou fundo, criando forças para não desviar o olhar da senhora de óculos grossos e roupa de frio rosa.
-Você tem relógios para criança?- disse ela, mudando de tom ,enternecida pelo olhar úmido de Manuel.  
Mas veloz que nunca, Manuel montou a mala e o cavalete dentro da floricultura. Tirou as pulseiras da Hello Kitty, Homem Aranha, Barbie...
- E são muito bons, viu senhora !
Ela acabou ficando com um do Batman, para o netinho e um da Barbie para a sobrinha neta.

Como o concordado, Manuel entregou-lhe os 10 reais e os relógios. Desajeitou-se para pegar a flor como se pegasse um recém nascido, ajeitou a mala e o cavale em um dos braços e foi para casa entregar os brincos da princesa Iolanda.

Sheyla Coelho

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

A Caipirinha

Acordou com o relógio na hora marcada, tinha festa na escola, naquele dia de São João. Entrou no banho cheia vontade, sentou-se ainda de toalha e entregou o cabelo molhado para que a mãe transformasse-o em trança.
Ensaiou a semana toda com a professora, não era a noiva, mas dançaria com o Gustavinho pela primeira vez em três anos de escola e festas juninas. Colocou o vestido de caipira novo, que fez a mãe comprar a prestação, recusando-se a usar o antigo porque nesta ocasião tudo precisava ser encantador para aparecer de braços enlaçados com o primeiro namorado, esse, claro, bem desavisado do seu cargo. Cedeu o rosto para ser pintado e depois em cima da cadeira, de batom , blush e pintas de lápis admirou-se a falsa caipirinha no espelho da alta penteadeira.
Chegando na escola, com muito cuidado para não amassar o vestido, posou para os fotógrafos que sempre deixam as crianças duras e sem jeito naquelas poses de álbum de escola onde quase todos temos um falso sorriso guardado.
Viu de longe a professora que já organizava a fila dos alunos, saiu em disparada, chegando na fila correu os olhos e não encontrou:
- Prof. onde está o Gustavo?
- Ai querida, ele ficou doente, a mãe dele me ligou agorinha, mas fica tranqüila o Jorginho na outra classe disse que dançaria duas vezes.
A notícia veio de espanto, sentiu como se toda as pintas cuidadosamente desenhadas escorregassem do seu rosto. Como poderia essas coisas acontecerem? Olhou para o fim da fila e viu a cara redonda e rosa do Jorginho sorrindo, aquilo a deixou fora de si, caminhou em direção ao menino todo disponível e deu-lhe um pisão no pé.
O menino , abriu um berreiro, a professora chegou correndo a mãe que viu tudo pulou segurando a filha sem entender.
- O que aconteceu?- disse a professora.
- Ela pisou no meu pé!- soluçou Jorginho.
- Foi sem querer!- retrucou a menina enfurecida e mal educada.
- Maria Eduarda, você ficou maluca?- resmungou a mãe apertando –lhe o braço.
- Quero ir embora.
- Ah, mais você vai mesmo mocinha.
- E daí?
- O que aconteceu filho? - veio bufando a mãe de cara tão rosa e redonda quando o filho.
- Foi só um mal entendido, não é Maria Eduarda? - disse a professora pondo panos quentes.
A mãe de Jorginho já com o menino no colo e ouvindo o choramingo baixinho no seu ouvido: “ Ela pisou no meu pé, e com força”. Tento ouvido o lamento do filho, a rosa senhora lançou um olhar fulminante para mãe e filha . A menina encarou, osso duro que era, já a mãe respondeu com um sorriso amarelo o olhar da outra mãe.
Uma saiu com o filho no colo cheia de carinho e a outra arrastava a filha pelo braço. A professora impotente respirou fundo e bateu palmas organizando a fila dou outros caipirinhas.
A mãe de Jorginho afogou-lhe a dor em sorvete e a mãe de Maria Eduarda esquentou-lhe a fúria em um safanão e deixou-a no quarto a sofrer da dor e do coração um dia inteiro sem televisão.

Sheyla Coelho

domingo, 5 de outubro de 2008

À Frida

Cessem com a lenda da conduta
pois foi por esta que entre braços e pernas alheias lhe perdi
foi-se toda honra de minhas coxas
onde já residiram tuas mãos que
hoje julgam insano o tímido cruzar dos meus braços
o não agudo dos meus lábios
e o sim perplexo dos meus olhos.

Duas oitavas acima
soa o inexorável órgão dentro de mim
perdido entre a vontade da alma e o medo do ego.

O medo ataca capa os sentidos
expõe os nossos músculos a movimentos involuntários,
e tudo pela vaga lembrança dos sábados histéricos,
entre as paredes da cidade de ruas vazias onde nunca lhe tive só lhe perdi.

Sheyla Coelho

domingo, 28 de setembro de 2008

O menino e o Rock And Roll

Naquele sábado, a mãe concordou que ele embarcasse no trem Francisco Morato-Barra Funda, pela primeira vez sozinho.
Aflita, deixou o filho na porta da estação
- Cuidado.
- Tá mãe.
Ivan estava indo ao aniversário da prima , em São Paulo, e sua tia o esperaria no destino final.
Entrou na estação com todas as recomendações da mãe girando em sua cabeça: “Não fale com estranhos, cuide do dinheiro da passagem, sua tia vai esperar na
catraca, na catraca viu?”.
Não precisou esperar, o trem já estava lá. Embarcou. Conseguiu um lugar na janela, olhou tudo que podia , o mato, os
Ipês roxos dos quais a mãe sempre comentava a beleza , não queria se esquecer dos detalhes.
Sentiu-se dono de si quando viu o
cadarço do tênis desamarrado, e tendo a oportunidade de escolher amarra-lo ou não, sem a mãe por perto, decidiu não amarra-lo.
Tinha pressa de chegar na festa apesar de estar gostando de ser independente.
Estava com a sua camiseta do “Nirvana”, banda antiga da época de seu pai, ganhou a camiseta dele, que era um grande fã da banda do vocalista loiro.
A viagem de ida foi um pouco demorada perante a ansiedade do garoto, o trem estava vazio e
tranqüilo, já o garoto visivelmente agitado.
Por fim o trem chegou ao destino esperado, a conhecida estação da Barra Funda. Caminhava só e a passos firmes como se fosse dono de tudo.
Lembrava-se do caminho. Lá no fundo já via a Tia de sorriso largo e cabelos descuidadamente pintados de loiro,
animadíssima para enforca-lo em um de seus abraços demorados.
- E aí Ivan , tudo certo, veio
direitinho? - disse agarrando o menino.
- Claro tia. - respondeu Ivan um pouco sem ar.
Entraram no F
usca laranja da tia e seguiram para o animado churrasco. Comeu carne, bolo e disputou os brigadeiros.
Quando viu as primas dançando a musica de um tal
MC, disse repetindo o pai:
- Isso daí é uma porcaria, nem têm letra!
- Ah Ivan você é
EMO!- disse tirando um sarro, a prima maiorzinha, que todas as outras seguiam.
“ Essas meninas não sabem de nada” pensou Ivan e saiu sem responder.
Jogou
video-game com o primo crescido. Decidiu que estava na hora de ir. Queria mesmo era voltar ao trem, a aquela sensação de liberdade que pouco aproveitara na vinda, tamanha vontade de estar na festa. Pediu a tia que o levasse a estação.
Comprou a passagem com o dinheiro que a mãe lhe dera, porém dessa vez não tinha pressa de chegar. Desceu a escadas rolantes em um mesmo degrau, deixando-se levar, parou na plataforma e ficou reparando em como ela era grande ...
Chegado o trem,embarcou. Sentou-se e grudou a cara na janela, sem se preocupar com as estações.
Algumas paradas a frente, entraram dois caras no vagão. Um era loiro cabelo comprido, “tipo
Kurt”, notou Ivan. O outro estava com roupas pretas carregava uma guitarra, Ivan não sabia dizer se era mesmo uma guitarra ou se era um baixo, ficou em dúvida porque o instrumento ia dentro de uma capa daquelas pretas aí ficava difícil de saber.
O rapaz louro levava uma mochila da qual saiam alguns ferros que Ivan identificou como um pedestal de microfone.
“ São de uma banda com certeza” Ivan ficou muito atento,nunca havia ido a um
show, tinha 11 anos e a mãe o achava muito novo para ir nestes lugares.
Desta vez o trem ia cheio e eles sem lugar para sentar ficaram perto da porta ao lado da cadeira de Ivan.
O garoto achou os caras demais, sempre que assistia a
MTV ou conversava com o pai, falava que ia ter uma banda e que iria tocar baixo. Achava os caras que tocavam baixo estilosos, não estéricos e metidos como os guitarristas, apesar das meninas gostarem mais destes.
Ivan percebeu que não era só ele quem olhava para os dois. Duas garotas haviam chego mais perto, uma senhora evangélica os analisava com desdém e muitas outras pessoas olhavam e desviavam, sincronizadamente, para aquela
direção do trem.
“E isso porque eles nem são famosos “- constatou Ivan, sem tirar os olhos do rapaz loiro.
O rapaz de óculos escuros, loiro, com um ar de seguro, realmente mexia mais com o trem que o amigo de roupas pretas e cabelos curtos. Ele dominava a situação encarava as pessoas que o olhavam, percorria com a cabeça o trem todo até que finamente seus olhos cruzaram o de Ivan, que ao contrario da maioria ingenuamente sustentou o olhar.
O cara loiro tirou os óculos escuros mediu Ivan e disse:
- E aí moleque, legal a camisa, você curte Rock
and Roll?
Ivan ficou petrificado, o coração quase
despencou pela boca, eles se entendiam, ele não era “EMO” coisa nenhuma e aquele cara sabia.
- Pode crer, Nirvana, sou fã!- respondeu , orgulhoso e entendido
O cara sorriu para ele, e recolocou os óculos no rosto. Ivan ganhou o dia, realmente especial.
Os dois caras desceram em
Caeras, Ivan anotou mentalmente para um dia poder conhecer aquele lugar. Novamente Ivan sentiu pressa de chegar, contava os segundos, queria relatar ao pai o que aconteceu.
Na estação Francisco
Morato, depois da catraca , estava o pai fumando um cigarro a luz do fim da tarde. Vendo o filho estendeu a mão, Ivan recusou-se a andar de mãos dadas, ignorando-lhe o gesto.
- Pai, fiquei amigo de uns caras que tem uma banda, eles curtem Nirvana. Eu quero começar a tocar baixo pai.
O pai ficou orgulhoso e jurou para si mesmo que iria trabalhar duro para dar um baixo a seu filho.
-
Vamo ver filhão. Agora da a mão aqui pro seu pai, e vamo mostrar pra sua mãe que cê ta vivo, porque ela tá super preocupada lá em casa.

terça-feira, 16 de setembro de 2008

2 mensagens por E-mail

Nunca pensou em não encontra-lo mais, só não o havia procurado, a tempos não se falavam senão por 2 mensagens que escrevera pelo e-mail, ele respondeu como o amigo de antes. Triste , mas não, não o amava. Não era nele que pensava nas horas de carência, era em outro talvez mais ideal, mais maduro.
Ela sempre achou um mistério nele, conheciam-se a anos ,desde o colégio. Ele confessava-lhe os segredos, as paixões e ela sempre lhe tinha um sorriso, um conselho. Vez ou outra ela sentia algo estranho em seu olhar , além de carinho dos amigos desde de muito, gostava deste mistério de pensar que ele a achava especial.
Meses atrás no carro ele depois de desabafar disse “posso?”,olhando-a nos lábios , ela cedeu ao beijo.
Beijaram-se como duas crianças pequenas, só os lábios se tocaram, os corpos se acanharam levemente para atrás. Pararam, ela tentou dizer alguma coisa para... só saiu um “estranho”, com o qual ele se desesperou, disse “somos amigos”,ela chateou-se, como qualquer uma gostaria de ouvir “uauuu”,mas fez que não e quis provoca-lo. Deitou em seu peito e tornou a beija-lo ele cedeu, ela retrucou “somos amigos” ele não entendeu e alivio-se.Ela bateu a porta do carro sorriu, e entrou em casa.
Entenderam-se, com desculpas , “aconteceu”, “foi bobagem”.Não se percebiam.
Novamente a sós conversaram sobre a vida o futuro e o dinheiro, beberam, e os corpos se quiseram, quase se amaram e ele disse “Não, não dá mais”, ela quis entender, fez que entendeu, calma ela olhou-o por um instante, ele assombrou-se teve medo dela, levantou-se arrumou a roupa e saiu. Ela , sentiu um golpe mudo tomar seu corpo, revirou -se , tentou chama-lo. Dormiu só naquela noite e depois com outros.
E agora entre amigos, 2 mensagens por e-mail.

Sheyla Coelho

sábado, 6 de setembro de 2008

O mais querer

Quero tudo, enquanto acho que sou nada,
quero mais nada quando vejo um pôr do sol,
quero mudar quando descubro novos motivos,
quero viver quando penso na morte,
quero amar quando vejo um céu estrelado,
quero saber quem sou quando falo de mim,
quero mudar quem fui quando escrevo currículos,
quero saber de você quando dou minha mão a ciganas na rua,
quero o querer sem saber de onde ele vem ,
quero os genéricos quando me perco de ti,
quero minha alma de volta quando olho fundo nos seus olhos,
quero, quero, quero
e nada sei eu mais que querer
quero querer quereria
quisesse eu o certo não saberia
quero .
 
Sheyla Coelho

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Pernas do Centro

Varre, atende, cardápios, trocos.
-Pensa em que ?
-Trabalha para quem?
-Filhos, aliança no dedo.

Escreve, assina, barganha e pensa.
-Trabalha por quê?
-Carro, casa na praia, estacionamento.

Corre, se cansa, anda de pasta plástica.
-Pensa...
-Procura trabalho.
-De que?
- Qualquer, porque sonha.

Sonha, brinca, enche a cara, caminha.
-Deprime, por quê?
- Pensa a mais.
-Trabalha para quem?
-Para si, desculpa-se.
-Quer saber o que todos fazem, por quê?
-Não sabe quem é!

Sheyla Coelho

terça-feira, 12 de agosto de 2008

Tito

Tito era um rapaz desses que não enxergam o lado ruim da vida, tinha uma complacência inata, invejada nas mesas de bar que frequentava.
– Tito é um grande camarada, quando minha namorada me deixou, disse que não me preocupasse, “a vida é assim, foi-se essa, um dia virá outra, e nada de ser melhor ou pior, só vai ser igual e diferente como os domingos”. Esse Tito é mesmo uma figura, e não pense que é só nesse papo de curar dor-de-cotovelo não, de onde veio esse papo de domingo sai cada uma! - declarou certo dia, no Bar, um amigo de Tito.
Assim era Tito, sempre cheio de conselho, era querido pela amizade, pelas palavras de ajuda, pelo alto astral. Ele não era um rapaz de grande sonhos e pretensões, falava que quem muito imagina pouco olha. Era uma dessas pessoas que faz amizade em ponto de ônibus, e não digo daquelas conversas rápidas que uma vez ou outra a gente tem e só dura até o ponto de descida, se ele estivesse a seu lado, você também o convidaria para uma cerveja logo mais, e se você é do tipo desconfiado, ele já saberia de sua vida conjugal. Uma amiga taróloga que conheceu no vão do Masp analisa:
– Tito é de Peixes, o último dos signos e com ascendente em câncer, o que traz essa vontade de confiar nele, essa coisa família.
Ele passeia bastante, prefere sair só, não porque não tenha amigos, mas diz que quando se sai acompanhado, as chances de conhecer gente nova diminuem.
Em uma tarde, foi ao parque do Ibirapuera andar de bicicleta. Viu próximo ao lago uma garota, ela lhe chamou a atenção, Tito sempre admirava as mulheres, todas, não importava nacionalidade ou idade, mas também, como a tudo, lhes dava uma intensa atenção efêmera.
Com a bicicleta começou dar voltas, porém sem a perder de vista; ela não o notou, estava entretida em um livro grosso, tentou ler o título, mas estava longe. O conhecido Tito do povo se aproximaria, mas aquele Tito daqueles segundos ficara de pernas frouxas, não se reconhecia.
E no seu minuto mais aflitivo até aquele dia, lutando para voltar a ser quem era, um homem sem pretextos, caminhou em um ato legítimo de coragem até a garota que lia.
Em um ato inusitado, o corpo da moça sentiu a sua presença, de súbito levantou a cabeça e disse rápida:
– Você fuma?
– Não - escorreu-lhe da boca, sem nada a complementar.
– Valeu, é que eu queria um isqueiro - disse e enfiou novamente os olhos no livro.
Os pés de Tito o levaram adiante, confuso e sem coragem de olhar para trás. Apiedou-se em seus próprios conselhos: “Se não é essa, será outra”. Porém por mais conforto que esta lição sempre cause, desta vez o nosso Tito experimentou a dor de não poder ter sido essa, e sim uma outra. Pegou a bicicleta que deixara no chão e durante todo esse dia não conversou com ninguém.


Sheyla Coelho

Ainda Flora e Zanca

– Vem!
– Se eu lhe pedisse para vir comigo, você viria?
– Não! ...Quer dizer, não sei, nunca te vi.
– Então por que pede para que eu vá?
– Ah!... Nossa, desculpe, só pensei alto, nem notei que alguém já havia ocupado o lugar do meu lado.
– É, notei que você estava distante. Qual o seu nome?
– É ...bem, Flora, eu me chamo Flora, e você?
– Eu me chamo Zanca, prazer.
– É, prazer ...Nossa, é meu ponto, eu estava em outra dimensão mesmo...
“Foi assim que conheci Zanca, nome estranho, não era bonito nem feio, mas tive medo dele, desci dois pontos antes do habitual. Sou assim com ônibus, fico pensando nos problemas da vida e entro numa outra dimensão mesmo, mas sempre tenho idéias boas dentro do ônibus, e andando também, parece que quando a gente está nessas situações que a gente não tem muito o que fazer, o imaginário cria com cuidado nossos maiores sonhos e nossos maiores medos se concretizando, só que como é uma simulação a gente sempre age da maneira certa, senão voltamos um pouco a fita e tudo se ajeita.”
Ela é mestre de cerimônias, dona de uma linda voz, de uma existência teimosa e de um talento inato para a prolixidade.
“Sentei-me do lado de uma garota, achei que tivesse fones no ouvido, tinha um olhar tão perdido, se não estivesse certo de que não havia fone, juraria que ela estava escutando uma dessas músicas do Chopin, Beethoven, Mozart, tamanha era a complexidade do seu olhar. Sabe, às vezes a gente saca tipo: olhar apaixonado, triste, de louco, e o dela era inatingível, parecia mergulhada em um imenso vazio, ela era linda. Foi aí que ela falou, e alto “vem!”, quis provocá-la, queria saber o que ela estava pensando, não pude deixar passar.”
Ele é atendente de telemarketing, não gosta do trabalho, mas tem que trabalhar para pagar o curso de teatro.
Ela não se lembra mais da fisionomia dele, porém sempre que está entre amigos conta o fato aqui exposto como o maior mico de sua vida. Ele se lembra de cada gesto, nunca a esquecera, nunca soube explicar o fascínio que aquele ser absorto lhe causara, a reconheceria. Tanto que reconheceu:
– Um café, por favor! Para viagem.
– Flora?
– Quem? Acho você se confundiu.
– Não , Zanca, do ônibus - sorriu (estação Ana Rosa, seis meses atrás).
Ela se lembrou, não dele, mais do nome, do fato, sentiu vergonha quando a amiga chegou.
Oi, Fernanda. Nossa, chegou cedo.
– É, vim antes para pegar um café.
– Fernanda - sussurra ele ao seu lado.
Ela olha-o, deixa se levar pela amiga, pega o café.
Ele acena com a mão, sente uma profunda tristeza, como se algo dentro dele morresse, não sabe muito bem o que, então morde seu pão na chapa e começa seu dia.

Sheyla Coelho

segunda-feira, 28 de julho de 2008

O amor dos desconhecidos

O grande apelo
Das bocas fugidias
Das velhas canções de amor

O samba falsificado
De tuas pernas brancas.
A cadência incompreensível
De olhares desconhecidos

Hoje estão a caminhar
Nas estradas da pele,
Na identidade de teus dedos.

A tristeza fria dos dias de solidão,
Se aquieta no dia do reencontro,
Onde bocas perdidas,
Sufocam respirações, enganam corações.

E ao calar dos instintos
Renova-se a melancolia do adeus,
Que torna cada encontro secreto,
Enquanto bocas anônimas se beijam,
Em quarteirões e quartos escuros
Por onde o amor que ninguém viu
Evapora-se como surgiu

E o cotidiano fixa-se
Na memória vaga
Dos reencontros possíveis perdidos no tempo.

Sheyla Coelho

O Jogo de Taco

Era dia claro, quase sem nuvens. O despertador tocara alto, e Sofia acordara bem, levantou com o famoso pé direito, respirou fundo, sorriu para a cama bagunçada. Era um dia perfeito como todos os outros: tinha uma manhã, teria uma tarde e com certeza a noite viria.
Chacoalhou-se, pulou e correu ao banheiro para que os lençóis não tivessem chance de convencê-la a voltar para a cama.
A água caía, o sabonete em suas mãos limpava, a escova de dentes tirou-lhe o gosto da noite dormida da boca, não comeu - sentira-se um pouco acima do peso na noite passada. Saia posta, blusa escolhida, sapatos calçados, chaves em mãos, tomou o rumo da rua. Na rua conhecida, deu uma bronca na vizinha que lavava a calçada e partiu em direção aos três quarteirões que a levariam ao habitual ponto de ônibus.
Chegando lá, parou, com o pé direito acariciando o chão em semicírculos, perguntou baixinho a si mesma:
– Para onde vou?
Não era louca, porém aos domingos sempre assim procedia. Como em um ritual, entregava-se às ruas, aos novos caminhos, a lugares onde seus sapatos ainda não haviam pisado e decidiu-se:
– Entrarei no segundo ônibus e descerei no décimo sexto ponto.
E assim foi feito. Já entrara naquele ônibus, afinal, tão perto de sua casa não havia muitos. Todavia, nesse ponto, nunca antes descera.
Parou em uma rua perto do centro, sabia mais ou menos onde estava, as ruas não tinham por ali muito movimento a não ser algumas crianças bolivianas que jogavam taco. Surpreendeu-se por as crianças saberem a brincadeira da sua infância, talvez por serem bolivianas, não tinha muita certeza se na Bolívia podia-se jogar taco e também porque sempre via no jornal a saga dos pais para arrancar as crianças de computadores e playstation. Não conhecia nenhuma criança de perto, era filha única e a família que tinha morava no interior. As crianças logo a notaram; sem jeito, começou a procurar algo na bolsa.
A bola correu longe com a tacada do menino de camiseta laranja.
– Tia, pega a bola - falaram os novos brasileirinhos.
Com a agilidade que o impulso lhe deu, parou a bola com o pé esquerdo, após um largo passo para o lado, o coração bateu rápido, e ela pegou a bola em uma das mãos. A menina encarregada da bola parou na sua frente:
– Valeu, tia - estendendo a mão.
Ela sorriu para a chiquita com gosto de travessura, como sorriu tantas vezes na infância do interior, correu sobre o pequeno salto e entrou no jogo.
As crianças se divertiram, a não ser o menino de camisa laranja, que não conseguiu rebater. Ela teve vontade de jogar a partida toda, mas a sua posição de adulta a proibiu, fez um jóia para a chiquita, que riu e rapidamente lhe ensinou um aceno mais moderno para as boas jogadas.
E o dia que nascera perfeito correu em seus passos e pensamentos, revivendo naquele momento um misto de coragem e liberdade que, aos olhos do dia seguinte, seria uma memória que mesmo sendo recente se misturaria com aquelas da infância de cor sépia.

Sheyla Coelho

A Bela do Cigarro

Fumava cigarros como uma artista de cinema antigo. Gostava de sair só, sentava-se sempre em uma mesa estratégica, onde fosse possível observar, gostava de ver outras pessoas conversando, achava incrível como as pessoas falavam de assuntos tão diversos e tão próximos; sempre havia uma mulher a ser execrada no papo de mulheres, sempre havia a mulher gostosa no papo dos garotões, e sempre, ah!, sempre havia uma suposta outra no papo dos namorados - em menor ou em maior grau, sempre havia algo de extremamente clichê, mas os detalhes eram a riqueza. Pedia uma cerveja e tomava-a lentamente, nunca tinha muito dinheiro, precisava então fazer o consumo demorado, antes pedia café, mas o café acabava rápido, e os gerentes olhavam feio. Às vezes, pensava se havia alguma profissão parecida, achou que seria psicologia, mas logo desistia, precisaria responder às pessoas, dar conselhos, e ela gostava mesmo era de ouvir, saber.
Ia cada dia em um lugar diferente, assustava-a que pudessem taxá-la de bisbilhoteira ou a solitária, porque sempre que se observa, assim, em lugares públicos, corre-se o risco de também ser observada, e ela não saberia como agir sendo ela o alvo da atenção.
Nesse dia, sentou-se em um bar vazio, os dois garçons conversavam, ela sentou-se, pediu a cerveja e, minutos depois, entrou um rapaz que também sentou-se só. Não conseguia classificá-lo, quem seria ele? Homem esperando amigos, homem esperando namorada, não conseguia identificá-lo.
Os olhares dele e dela se cruzaram umas tantas vezes, a cerveja dela já estava pela metade e mais ninguém entrara pela porta.
O interesse dela por aquele rapaz tonara-se trasbordante, não conseguia tirar os olhos dele. Como seria sua voz? No que ele ali pensava? Que profissão teria ele? Não havia uniforme, pasta, ele poderia ser qualquer coisa. Levantou-se, foi ao banheiro para passar o mais próximo possível dele, passou estrategicamente com toda graça que uma mulher possui quando quer algo, foi, voltou, ele até a olhou, mas nada disse, talvez nem tenha olhado para sua bunda como ela acharia normal. Sentiu-se um pouco ridícula quando retornou à mesa, não se achava muito bonita.
Ele então levantou-se, pagou a conta e se foi. Isso aconteceu às 20h38 de uma quinta-feira, horário e dia em que sempre poderemos encontrar a bela do cigarro (como a nomeou em segredo um dos garçons), a sós, naquele bar não muito aconchegante e longe de sua casa, à espera de um próximo encontro.

Sheyla Coelho

quinta-feira, 19 de junho de 2008

Passeio Noturno

O dia corria nublado, abafado, como se fosse um espelho dos pensamentos dessa nossa protagonista.
Casaco de lã, calças jeans, escolhera o banco mais escondido do ônibus (aquele que fica logo atrás do par de bancos que é mais alto), como se só ali, no meio dos mais diversos desconhecidos, onde ninguém a perguntaria como ela se sente, ela pudesse ser enfim ela mesma.
Se quisesse chorar, choraria. Não olhava nem quem se sentava a seu lado, grudava os olhos no vidro e via passando casas, viadutos, em silêncio, esperando que essa viagem urbana nunca chegasse ao fim. Torcia debilmente para haver trânsito para que pudesse ficar ali por mais tempo, porém a viagem chagara ao fim.
Desceu no ponto habitual, mas neste dia não tinha compromisso.
Andou, como se a vida só lhe fosse boa nestes momentos, estava farta de pensar em como queria dinheiro, amor, credibilidade, só caminhava, sentia o vento no rosto, o ar nos pulmões. A natureza dela era ser livre, só conseguia se sentir capaz de agir depois de momentos assim.
- Virgínea?
Não identificou a voz de imediato, assustou-se, a rua estava particularmente escura. Virou-se lentamente, achou que estava em um filme, era um seu “ex” que morava ali por perto, mas ela nunca o havia encontrado por acaso, ele se casara e não freqüentavam mais os mesmos lugares, era o tipo de pessoa que não se encontra por aí. Sim, porque ela tinha amigos com os quais ela nunca marcara nada nem tinha telefone, e sempre se encontravam; ele não, ele era o rapaz da hora marcada.
– Bruno, tudo bem? - deu-lhe um beijo, estava trêmula, afinal, ele a pegara sendo ela, assim tão livremente caminhando pela rua.
– Você está bonita - reparou ele. Sei lá, parece tranqüila.
– Estou muito bem - falou engrossando a voz em tom de brincadeira, ironizando um cowboy americano.
Ele sorriu, disse que tinha que ir e foi. Ela virou-se, o viu andando de costas, sua pressão caiu. Estava frágil. Não queria mais andar por aí, queria mesmo era ter um lugar a que pudesse ir como ele, um lugar para relaxar, se sentir parte, um lugar que, para onde quer que ela fosse, ela desejasse voltar.

Sheyla Coelho

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Noite de "João"

A noite estava fria, ele se encheu de casacos e mesmo assim saiu às ruas, não tinha uma namorada e não iria se encontrar com ninguém. Estava farto como todos os dias, não trabalhara, era poeta e não escrevera uma linha, uma dor de cabeça que não passava atormentava-lhe o olhar, quando se sentia assim a sua mente se tornava branca. O vento cortava-lhe o rosto, já era madrugada, só ele nas ruas caminhava, as árvores balançavam, ele queria pensar na vida, novamente encontrar saídas, queria lembrar um nome, uma imagem que lhe trouxesse conforto. Caminhava rápido, fazia força para se livrar de um sentimento, forçou o choro, mas nem uma lágrima caía.
O seu nome, um nome comum, poderia ser Carlos, Pedro, mas eu prefiro chamar-lhe João, não era casto nem divino, porém sempre tinha palavras doces. Hoje não, hoje não falara em voz alta, passou o dia sozinho, dormiu como dormem os ursos, só tivera coragem de se levantar agora na madrugada; inquieto, precisava suar, sair dali, lembrar-se dos pulmões, das pernas. Caminhava com passos largos e apressados como alguém que está atrasado, mas todas as decisões eram tomadas a cada momento, não tinha um lugar onde ir, a cidade era pequena, não havia comércio, bares, nada em uma madrugada de segunda feira, os amigos trabalhadores de carteira trabalhariam no dia seguinte, os amigos chefes também não ajudariam, não sabia o que procurava, perseguia os seus passos rua a rua, quarteirão a quarteirão, e quando se deu conta, corria. Parou em uma pequena praça, velha conhecida que a tempo não visitava, havia um balanço improvisado em uma das árvores, com certeza agrado de avô para uma criança. Ofegante, parou, decidiu-se por sentar no tal balanço. Lentamente foi soltando o seu peso para ter confiança de que as velhas cordas e tábua o sustentariam, respirou fundo o ar gelado da cidade da serra, achou que morrer deveria ser parecido, não que quisesse morrer, mas estava com medo. O medo de quem já não é mais menino, um medo de quem já escolheu uma forma de levar a vida, um medo de quem já não pode ter mais alternativa. “Quando eu crescer eu vou ser...”, um medo de gente que já cresceu.
Tinha 31 anos, dois livros, a casa que herdara da mãe, alguns amigos e esse sentimento que sempre carregara desde a infância que, quando tentara explicar, disse bêbado a algum amigo se tratar de uma coisa que está dentro dele, que deve ser feita e não se expressa nem em palavras nem em ações, uma coisa que seria importante. Disse que tudo o que escrevera até hoje fora para chegar mais perto de entender esse sentimento.
Impulsionou-se com os pés sem grande entusiasmado, e o balanço lentamente se movia, sentiu-se embalado, teve pena de si, lembrou-se dois pais que já se foram, recordou-se que desde criança sonhara em ser poeta, era poeta, mas hoje era como se não fosse, hoje era como se a vida fosse uma sala onde não houvesse móveis, nem família, nem amigos. Sentiu-se prisioneiro daquele céu estrelado, daquele frio, daquelas ruas; desejou ser amado por uma mulher meiga, um rosto que até então nunca vira, por um minuto navegou sobre esse pensamento de esperança de que ela haveria de estar em algum lugar, e neste momento de escapismo imaginou-se sendo outro, a esperança é um sentimento forte, transforma a gente em um minuto. Levantou-se, decidiu voltar para casa, forçou para imaginar mais sua nova namorada, mas no fundo sabia que aquela era a mais fraca das alternativas, iludir-se não é o caminho, inventar-se dentro de si mesmo não dura, tem de ser externo, mudar tem de ser aos olhos do mundo, porque senão o que você pede de novo chega diante de ti e não o reconhece. Mesmo assim se fez um carinho, permitiu-se crer em sua nova história. Caminhando lentamente, tomou caminho de casa, a coisa dentro de si, o seu grito, calou por mais um tempo, e ele conseguiu, estendidas as cobertas, novamente dormir.

Sheyla Coelho

Girassol

Apareceu diante da mãe, no auge de seus quatro anos, com toda a sua identidade, de sapatos marrom, calça verde-oliva e uma casaco amarelo.
– Juliana, que roupa é essa?
– Eu escolhi - sorriu orgulhosa. Vamos?
Iriam ao parque andar de bicicleta, passeio a tanto esperado. Ganhara a bicicleta uma semana antes, em seu aniversário. Era lilás e ainda com as rodinhas de apoio, a primeira bicicleta, não havia andado muito, só ali dentro do prédio. A mãe sempre trabalha muito. Porém nesse domingo elas iriam.
– Mas Juju, essas cores não combinam.
A menina encarou a mãe sem entender, achava que tinha feito tudo certo, olhara no espelho como a mãe sempre fazia, calada, e um pouco decepcionada olhou perto da janela, para o girassol que a mãe tanto gostava e cuidava e disse:
– Mas é igual ele - apontou o girassol.
A mãe sorriu e sentiu o peso de uma grande ternura abrindo suas costelas e enchendo seu peito.
– Então vamos, meu girassol.

Pegou nas mãos seu girassol falante e levou-o ao parque.

Sheyla Coelho