terça-feira, 12 de agosto de 2008

Ainda Flora e Zanca

– Vem!
– Se eu lhe pedisse para vir comigo, você viria?
– Não! ...Quer dizer, não sei, nunca te vi.
– Então por que pede para que eu vá?
– Ah!... Nossa, desculpe, só pensei alto, nem notei que alguém já havia ocupado o lugar do meu lado.
– É, notei que você estava distante. Qual o seu nome?
– É ...bem, Flora, eu me chamo Flora, e você?
– Eu me chamo Zanca, prazer.
– É, prazer ...Nossa, é meu ponto, eu estava em outra dimensão mesmo...
“Foi assim que conheci Zanca, nome estranho, não era bonito nem feio, mas tive medo dele, desci dois pontos antes do habitual. Sou assim com ônibus, fico pensando nos problemas da vida e entro numa outra dimensão mesmo, mas sempre tenho idéias boas dentro do ônibus, e andando também, parece que quando a gente está nessas situações que a gente não tem muito o que fazer, o imaginário cria com cuidado nossos maiores sonhos e nossos maiores medos se concretizando, só que como é uma simulação a gente sempre age da maneira certa, senão voltamos um pouco a fita e tudo se ajeita.”
Ela é mestre de cerimônias, dona de uma linda voz, de uma existência teimosa e de um talento inato para a prolixidade.
“Sentei-me do lado de uma garota, achei que tivesse fones no ouvido, tinha um olhar tão perdido, se não estivesse certo de que não havia fone, juraria que ela estava escutando uma dessas músicas do Chopin, Beethoven, Mozart, tamanha era a complexidade do seu olhar. Sabe, às vezes a gente saca tipo: olhar apaixonado, triste, de louco, e o dela era inatingível, parecia mergulhada em um imenso vazio, ela era linda. Foi aí que ela falou, e alto “vem!”, quis provocá-la, queria saber o que ela estava pensando, não pude deixar passar.”
Ele é atendente de telemarketing, não gosta do trabalho, mas tem que trabalhar para pagar o curso de teatro.
Ela não se lembra mais da fisionomia dele, porém sempre que está entre amigos conta o fato aqui exposto como o maior mico de sua vida. Ele se lembra de cada gesto, nunca a esquecera, nunca soube explicar o fascínio que aquele ser absorto lhe causara, a reconheceria. Tanto que reconheceu:
– Um café, por favor! Para viagem.
– Flora?
– Quem? Acho você se confundiu.
– Não , Zanca, do ônibus - sorriu (estação Ana Rosa, seis meses atrás).
Ela se lembrou, não dele, mais do nome, do fato, sentiu vergonha quando a amiga chegou.
Oi, Fernanda. Nossa, chegou cedo.
– É, vim antes para pegar um café.
– Fernanda - sussurra ele ao seu lado.
Ela olha-o, deixa se levar pela amiga, pega o café.
Ele acena com a mão, sente uma profunda tristeza, como se algo dentro dele morresse, não sabe muito bem o que, então morde seu pão na chapa e começa seu dia.

Sheyla Coelho

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